segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Olhe.






A semana passada eu fui tirada do meu lugar de sempre pelos acontecimentos. E aconteci em ônibus, carro, metrô, calçada, dia de sol, ao invés da noite. Arrancada da minha zona de conforto, eu arregalei os olhos. Havia tanta coisa para se ver que eu me atrapalhei toda.

Eu estava com medo, a princípio, certa de que faria errado, como se fosse possível, sozinha, errar a receita desse mistério que é a vida. Na verdade, às vezes o ser humano acha que pode mais do que realmente consegue levar adiante. Acha que é dono de decisões que não lhe cabem. Eu acho isso o tempo todo, mas ainda bem que paro com isso depois de testar a impossibilidade. Aceitar minha humanidade.


Um amigo me disse, depois de eu me negar a visitá-lo pela centésima vez, alegando que estava na fase do bicho do mato – e estava mesmo... Nunca minto sobre isso - que a gente precisa contrariar o próprio coração, vez ou outra, porque, às vezes, ele tende a se afundar numa melancolia doce, doce, que se espalha pela boca da alma da gente, travestido de sobremesa após um toque de cruel realidade. Porém, ela se hospeda na alma da gente, e de lá não sai, tirana, propensa a cultivar solidões.



Não entendi muito bem o que ele queria dizer, num primeiro momento, mas confesso que imaginei a melancolia, uma senhora de bons modos, nariz empinado, emergente dos sentimentos, entrando e tomando conta do espaço. A princípio, a conversa é boa, animada, poética até! Depois ela silencia, acende um cigarro, pigarreia, desvia o olhar, e o abandono é completo.

Já disse que adoro aconchego? Claro que me encanta estar só, sou viciada em casa vazia, assistir filmes até tarde, escrever de madrugada, sem interrupções. Mas gosto de companhia, também, porque me agrada a voz do outro dizendo diferente o sentimento que, vez ou outra é meu, alimentando o meu dentro com sua filosofia, ainda que leve, ou lânguida, ou frenética. A ausência de expectativa é o branco cuspido pelo nada vivendo em lugar nenhum.


Às vezes eu esqueço que existe o dia, porque passo ele todinho dentro dessa minha caixinha, fazendo meu trabalho, da melhor forma possível, de costas para janelas abertas, ar-condicionado no talo. Mas tive de sair, porque as circunstâncias me tiraram daqui bem na semana, horário comercial, dia de sol que ardia. E me embrenhei na multidão e suas roupas, seus sapatos, suas urgências. Seus olhares deleitados, dolentes, mansos e desatinados. Há tempos não mergulhava no lá fora e suas nuanças: correria, falação, ponto de ônibus lotado. A cidade envaidecida por tantos caminharem em sua pele, tapando faltas, tornando-a acompanhada.


Sou uma parte muito pequena desse todo. Um fragmento desengonçado, com dúvidas a tiracolo e sorrisos contidos. Sou eu e mais alguém, porque a compatibilidade também mora nos incômodos. Alguém deve sentir o que sinto, mas talvez com mais brandura. Talvez com mais veemência. Talvez alguém olhe para a vida, como eu olho, neste momento, e nossos olhares se encontrem no desvelar mistérios, apregoar sentidos, cultivar sonhos.


2 comentários:

  1. Que lindo! Que complexo! Que TUDO!
    Foi você quem escreveu, Iara?

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  2. Ah não Wally, é um texto da Carla Dias, uma escritora que eu adoro!
    Me identifico muito com os textos e os livros dela.

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